A quase inexistência de gripe no último ano pode comprometer a eficácia da vacina para esta época que está a ser elaborada neste momento. Esta situação, aliada ao aliviar das medidas de proteção e ao risco de aumento de casos da Covid-19, com a abertura das escolas, está a preocupar os especialistas
A quase inexistência de gripe no último ano pode comprometer a eficácia da vacina que neste momento está a ser feita. Esta situação, aliada ao aliviar das medidas de proteção e ao risco de aumento de incidência com o regresso à escola e ao trabalho, está a preocupar os especialistas.
Se todos os anos já é difícil prever o comportamento da gripe, este ano é uma “incógnita”, alerta o infeciologista Vítor Laerte, que diz que a “pouca circulação” do vírus, incluindo já este ano no Hemisfério Sul, “prejudica a elaboração da vacina”, comprometendo a sua possível eficácia.
Uma vez que a vacina contra a gripe é feita a partir das “cepas que circularam no ano anterior”, a escassez de dados recolhidos nos últimos meses pode aumentar ainda mais a probabilidade da vacina “não casar com o vírus que vai circular no ano para que a vacina foi feita”, um risco que já é habitual, mas que este ano poderá ganhar outra escala .
A par das dúvidas sobre a eficácia das vacinas que estão agora em produção, o vírus da gripe pode este ano também beneficiar do levantamento de algumas medidas de proteção contra a covid-19 e do enfraquecimento da imunidade da população, que praticamente não teve contacto com o vírus nos últimos meses. O duplo contágio (covid-19 e gripe) é também um cenário que está em cima da mesa e que poderá ter impacto no Serviço Nacional de Saúde.
Produção da vacina sem certezas
A vacina contra a gripe é composta tendo por base as estirpes que circularam nos meses anteriores, mas, este ano, o cenário é ainda mais incerto do que o habitual.
Em fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a composição recomendada de vacinas contra o vírus Influenza para uso no hemisfério norte em 2021-2022, mas reconhece um “redução da vigilância do vírus Influenza e/ou atividades de notificação em muitos países”. O organismo adianta ainda que foram relatados níveis baixos de detecções de gripe e que “menos vírus estavam disponíveis para caracterização”. No Reino Unido fala-se de em quebras na ordem dos “94% nos dados de sequência genética relatados no banco de dados”, o que coloca em risco a eficácia das vacinas em produção, como noticia o The Independent.
Apesar de já haver uma recomendação para a composição de vacinas, usar a vacina do ano anterior pode ser um plano B, como diz à VISÃO Miguel Castanho, do Instituto de Medicina Molecular (iMM). “O vírus da gripe muda muito de ano para ano, na dúvida, a utilização de uma vacina de um ano para o outro pode resultar, há alguma perda de eficácia, mas será sempre um plano B possível. Ainda assim, o que me parece também é que uma incidência reduzida da gripe não é propriamente um desconhecimento sobre o vírus, quer dizer que circula menos, mas a capacidade de identificar, estudar e produzir uma vacina adequada não parece que seja comprometido”, explica o investigador.
Vitor Laerte também não coloca de parte a possibilidade de se usar a vacina produzida para o ano passado, mas esclarece que “não há como prever” se é eficaz ou não, tal como não se sabe se a vacina desenhada para este ano é a mais certeira. “Quando se faz a vacina está-se a supor que os vírus que vai circular no ano seguinte são os que circularam no ano anterior, mas isso às vezes pode não acontecer. Isto é sempre um problema que enfrentamos com o Influenza, mas isso não impede que tenhamos de vacinar”, diz o especialista.
Um outro fator que pode variar as contas da gripe e, por consequência é o facto de estarmos a assistir a uma “modificação da epidemiologia” dos vírus respiratórios. “Tivemos um momento de vírus respiratórios agora no início verão que não era uma época típica desses vírus e eles aconteceram, tiveram uma incidência aumentada”, afirma Vítor Laerte.
Imunidade contra a gripe ficou comprometida?
A fraca circulação e o (quase) nulo contacto com o vírus devem-se, em parte, às medidas de prevenção da covid-19: viajou-se menos pelo mundo, as pessoas estiveram mais tempo em casa, a higienização das mãos passou a ser regra e o uso de máscara uma obrigatoriedade. Mas, poderá isso comprometer a nossa imunidade ao vírus Influenza? Depende de como for preparado o inverno, embora, mais uma vez, a imprevisibilidade do vírus impeça que sejam feitas previsões para o futuro.
Dois recentes estudos levados a cabo pela Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, prevêm que o vírus da gripe se transmita de forma mais rápida e tenha um impacto mais negativo na saúde e nas hospitalizações este ano nos Estados Unidos, conta a NBC. Ainda em pré-publicação e não revistos pelos pares, os estudos revelam uma maior suscetibilidade por parte das crianças.
Vitor Laerte explica que “a questão da imunidade ao Influenza depende muito da cepa que está a circular” e como não se conhece a estirpe deste ano, não é possível saber como será a reação. Contudo, revela que mesmo que haja “uma variação ou outra, não é uma coisa muito drástica”. .
Para o pneumologista e presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão José Alves, o problema da imunidade “é que as gripes mais graves têm a ver com alterações do vírus que são aleatórias, podem ocorrer ou não ocorrer”, mas afirma que, mesmo assim, “o que é evidente é que não podemos deixar de vacinar os nossos doentes contra a gripe, vamos ter que pensar nisso calmamente e voltar à normalidade, que é não usar máscaras e fazer vacinas da gripe em todos os grupos etários que precisem”.
Covid-19 e gripe: há incompatibilidade nas vacinas?
Com o plano de vacinação contra a gripe a arrancar em outubro e com a possibilidade de se avançar com a terceira dose da vacina contra a covid-19, resta saber como é que poderia acontecer a toma das duas vacinas. À VISÃO, os especialistas dizem que, à partida, não há incompatibilidade se se respeitar o tempo de espera entre a toma de uma e a toma de outra, mas apelam à prudência.
Para Miguel Castanho, “é uma questão de planear” a terceira dose, mas afirma que, “para já, não temos razões para a dar e nada aponta que ela seja uma mais-valia ou que traga uma coisa de novo. De acordo com aquilo que defendo, a questão [da vacina da gripe em simultâneo com a terceira dose] nem sequer existe”. No entanto, o investigador diz que “do que se conhece, não haverá, por princípio, problema em cruzar as duas vacinas. Normalmente, manda o princípio da prudência, que não se faça uma vacinação muito próxima das duas, mas, em princípio, isso já não acontecerá porque a maior parte das pessoas que têm idade para ser vacinadas contra a gripe já foram vacinadas contra a covid-19 há um tempo”.
Já Vitor Laerte alerta para o facto de estarmos perante uma vacina que é recente (a da covid-19) e do risco que há por não se conhecerem os potenciais efeitos colaterais quando combinada com outra vacina para combater outro vírus. “Como a vacina contra a covid é uma vacina muito nova, temos ainda a vigilância muito grande em cima dela, por causa dos efeitos adversos”, destaca o infeciologista, que continua: “não convém misturar as duas juntas porque nunca vamos sabemos qual é o efeito colateral de uma e da outra. É aconselhado haver duas semanas [de espera entre as tomas]”.
Risco de duplo contágio
O investigador Miguel Castanho diz que “acabando com as medidas de prevenção da covid-19 antes do inverno, é possível que, de facto, tenhamos um aumento, pelo menos relativo, de incidência das duas coisas e é sempre possível que alguém apanhe as duas coisas em simultâneo”. Contudo, explica que “se tivermos uma coincidência relativamente baixa de covid-19 – e isso depende muito do que vai acontecer até ao inverno – e uma incidência também relativamente da gripe, isto é, que não haja um surto viral muito grande, a probabilidade da mesma pessoa apanhar as duas coisa sao mesmo tempo é muito baixa”.
Mas, e se, de facto, uma pessoa contrair as duas doenças? De acordo com “alguns estudos preliminares, muito no início”, citados por Miguel Castanho, ficou demonstrado que “se a pessoa tiver gripe e covid-19 ao menos tempo fica numa situação mais debilitada, como se esperaria.De qualquer maneira, anossa preocupação deve ser de manter em níveis relativamente baixos, ou tão baixos quanto possível, quer uma coisa quer a outra”.
A importância do bom senso
À VISÃO, o médico infecciologista Vítor Laerte alerta para a importância do comportamento da população durante o outono e o inverno, alturas do ano em que a incidência do vírus da gripe tende a ser maior em Portugal. Embora reconheça que o fim do uso obrigatório de máscaras ao ar livre é uma boa medida, pois, diz, “é importante o Governo dar sinalização de que o trabalho que tem sido feito e o esforço do povo português está a ser bem-sucedido”, o especialista pede “bom senso”, sobretudo nos ajuntamentos e no uso de máscara em ambientes fechados, até porque pode ser isso a ditar o quão intensa poderá ser a época gripal. “A pergunta para um milhão de euros é: como é que se vai comportar o Influenza agora? Ninguém sabe, tem muito a ver com o comportamento das pessoas, se continuarem a usar máscaras em ambientes fechados, evitarem aglomerações e se vacinarem”, frisa.
José Alves, presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão, defende também que o bom senso relativamente ao uso das máscaras é determinante, embora afirme que “não é expectável um surto de gripe mais grave” este ano face ao ano anterior, apesar de dizer que tal “depende obviamente do facto aleatório, de se alterar muito o vírus ou não”. “Se nos recatarmos, há menos contactos e há menos doenças infectocontagiosas. O uso da máscara impede [isso]”, conclui.