Só em 2020 foram diagnosticados 2 milhões e 200 mil novos casos de cancro do pulmão em todo o mundo. Cerca de 5 mil em Portugal. A pandemia pode estar a atrasar alguns diagnósticos, mas também permitiu detetar casos precoces. Fomos saber porquê nesta entrevista com o médico Pedro Fernandes, especialista em cirurgia torácica no Centro Hospitalar de São João, no Porto. Dia 1 de agosto é o Dia Mundial do Cancro do Pulmão.
Estamos a assistir a mais casos de cancro do pulmão em 2021?
Ainda é cedo para analisarmos os dados de 2021. Os últimos dados são referentes ao ano 2020, onde se mantém o gradual aumento do número de casos diagnosticados que se tem verificado ao longo dos últimos anos. O cancro do pulmão é um problema global com mais de 2 milhões e 200 mil novos casos diagnosticados em todo o mundo no ano de 2020, sendo que em Portugal foram diagnosticados mais de 5.400 novos casos nesse ano. O número crescente de casos não é explicado apenas pela nossa maior acuidade diagnóstica, mas reflete sobretudo o grande flagelo que é o principal fator de risco para o cancro do pulmão – o tabaco.
Em que estado estão a surgir estes novos casos?
Essa é uma grande incógnita dos tempos atuais, moldada por algo a que também o cancro do pulmão não é imune: a pandemia COVID-19.
O primeiro ponto a entender é que o cancro do pulmão não deixou de existir com a COVID-19, por isso os doentes, mais cedo ou mais tarde, irão ser diagnosticados. Em relação ao estado em que surgem os novos casos, podemos assumir duas perspectivas: Por um lado, temos duas doenças – cancro do pulmão e COVID-19 – com alguns sintomas em comum, como a tosse persistente e falta de ar, o que pode levar os doentes com cancro a não consultarem o seu médico assistente e assumirem um diagnóstico de infeção, quando na verdade apresentam já manifestações de cancro do pulmão.
Também deveremos ter em conta o mais difícil acesso aos cuidados de saúde primários nesta pandemia, bem como o potencial atraso hospitalar na resposta de consultas e meios complementares de diagnóstico, o que levará inevitavelmente a um diagnóstico mais tardio. Já existe alguma evidência, sobretudo vinda do Reino Unido e França, com dados a demostrarem que comparando períodos homólogos de 2019 e 2020 foram realizados menos 6 a 29% de diagnósticos de cancro de pulmão. Os estudos nacionais mostram que o impacto não terá sido tão significativo no número de casos diagnosticados e que também não têm sido diagnosticados casos mais tardiamente. No entanto, teremos de esperar por dados a mais longo prazo para retirarmos conclusões.
Por outro lado, a perspetiva positiva que poderemos retirar da pandemia é que devido à COVID-19 estão a ser realizadas mais tomografias computorizadas (TC) torácicas, o que tem proporcionado a deteção acidental de pequenos nódulos pulmonares e, consequentemente, tem levado ao diagnóstico de alguns casos de cancro do pulmão em fases precoces que de outra forma apenas seriam detetados numa fase mais avançada.
Ou seja, a pandemia ajudou a identificar casos que provavelmente seriam identificados tarde demais?
O cancro do pulmão em estadios precoces, nos quais poderemos oferecer um tratamento radical, como a cirurgia, é geralmente assintomático, sendo a doença detetada, muitas das vezes, por acaso, com a realização de um exame de imagem do tórax por variadas razões, como por uma infecção respiratória ou um traumatismo, o que leva à identificação de lesões nodulares de novo ou em crescimento, iniciando assim a marcha diagnóstica até ao cancro do pulmão. A COVID-19 veio aumentar o número de TC torácicos realizados, o que já levou a diagnósticos precoces de cancro do pulmão.
Que sintomas nunca devem ser ignorados?
Os sintomas variam de acordo com o estadio da doença. O curso silencioso do cancro do pulmão determina em grande parte a sua elevada letalidade, pois 70% dos casos são já diagnosticados numa fase avançada da doença.
A maioria dos doentes é assintomática nos estadios iniciais, sendo a lesão pulmonar muitas das vezes detetada acidentalmente, através da realização de uma radiografia torácica ou TC torácica.
Numa fase mais avançada da doença, os doentes já são geralmente sintomáticos, porém, não podemos falar de sintomas típicos de cancro do pulmão. A doença pode manifestar-se por sintomas devido ao envolvimento local dos pulmões, tais como dificuldade em respirar, tosse persistente, presença de sangue na expectoração ou dor torácica, mas também se pode expressar por sintomas generalizados de perda de apetite, perda de peso ou fadiga. No caso de doença metastizada, os sintomas podem estar relacionados com o órgão afetado por metástases, como por exemplo sintomas neurológicos (no caso de metástases cerebrais) ou dor óssea (no caso de metastização óssea).
Em termos do tratamento, a pandemia pode ter penalizado os doentes?
O tratamento é inteiramente dependente do estadio no qual é diagnosticada a doença. Os dados que possuímos mostram que em Portugal, nesta fase de pandemia, os casos de cancro do pulmão têm sido diagnosticados nos mesmos estadios que eram detetados antes da pandemia.
Em relação à capacidade de resposta oncológica hospitalar, nomeadamente no tratamento cirúrgico do cancro do pulmão, durante a pandemia, as cirurgias oncológicas não foram suspensas e foi acautelado um plano de prioridade oncológica de forma a manter a resposta cirúrgica atempada aos doentes com cancro do pulmão, pelo que neste ponto os doentes não foram penalizados.
Também na doença avançada, as equipas oncológicas mantiveram a sua atividade e criaram circuitos independentes para os doentes com cancro do pulmão de forma a manter o início dos seus tratamentos em tempo apropriado.
O tabaco continua a ser a principal causa do cancro do pulmão. Quais são as outras?
O principal fator de risco do cancro do pulmão é, sem dúvida, o tabaco, responsável por mais de 80% dos casos. Este é o elemento preponderante nesta doença e estima-se que em 2019, em Portugal, mais de 1,3 milhões de portugueses fumavam diariamente, sendo que 17,0% da população com 15 ou mais anos era fumadora e que 21,4% era ex-fumadora.
Outros fatores de risco também existem, nomeadamente o facto de se ser fumador passivo, a exposição ao rádon ou asbestos, exposição ocupacional e industrial e a poluição do ar. A evidência da predisposição genética para o cancro do pulmão tem sido difícil de estabelecer devido a fatores ambientais confundidores, no entanto, alguns dados começam a surgir nesse sentido.
Como se previne esta doença?
A prevenção através da cessação tabágica é o primeiro e determinante passo no combate a este flagelo. A história mostra-nos que os padrões geográficos e temporais da doença retratam o consumo de tabaco ao longo das décadas passadas, observando-se que nos países que cedo adoptaram medidas efetivas de cessação tabágica, obtiveram uma redução nas curvas de incidência de novos casos de cancro do pulmão de forma mais precoce. Em Portugal, a prevenção e, sobretudo, os programas desenvolvidos de cessação tabágica estão a mostrar os seus frutos, não sendo agora altura de abrandar, pois a iniciação de hábitos tabágicos nos jovens ainda é substancial, pelo que é expectável que o cancro do pulmão se mantenha um importante problema de saúde global nas próximas décadas.
Porque é difícil tratar doentes com cancro metastizado?
Quando falamos de cancro metastizado, falamos de uma doença avançada, sistémica. Na doença avançada, o nosso objetivo não é a cura, mas sim o tratamento, tornar o cancro do pulmão uma doença crónica, possibilitando o aumento da sobrevida e qualidade de vida dos doentes. Nesse sentido, os últimos anos têm sido de uma magnífica evolução. Há menos de uma década, a clássica quimioterapia era a única solução que permitia aos doentes uma sobrevida de pouco mais de um ano. Hoje em dia, as terapêuticas dirigidas e a imunoterapia revolucionaram a forma como tratamos o cancro do pulmão. As primeiras contemplam fármacos direcionados para atingir alvos específicos do tumor, enquanto que a imunoterapia não ataca diretamente as células tumorais, mas, de certa forma, ensinamos o nosso sistema imunitário a identificar as células tumorais e orientamo-lo para combater estas células. Estas novas terapêuticas permitem não só um incremento substancial na sobrevida, mas sobretudo um melhoramento na qualidade de vida destes doentes sem os efeitos adversos conhecidos da quimioterapia.
Há esperança no tratamento do cancro do pulmão?
Sem dúvida. Há esperança no combate a este flagelo que é o cancro do pulmão. No entanto, tem de estar assente em três pilares fundamentais: prevenir com evicção tabágica, diagnosticar precocemente e tratar cedo com o melhor que temos para oferecer..