Falhas de memória, dificuldade de concentração ou na capacidade para fazer um raciocínio simples, fintam-nos com frequência. Aqui, não é alheio o acelerado estilo de vida moderno. Má “dieta” para o cérebro, carente de novas experiências. Atenta à forma como devemos estimular o cérebro, a psicóloga Sandra de Carvalho Martins elaborou um plano de exercícios divertidos e práticos. Sistematizou-os no livro “Um cérebro à prova de cansaço”. Conversámos com a autora e viajámos ao vasto território que é o cérebro humano.
É ávido de novas experiências, curioso, desperto; sempre em aprendizagem, independentemente da idade, o cérebro está em constante mudança e adaptação. Este órgão é um mundo povoado por 86 mil milhões de neurónios e responsável pela intuição, imaginação, ação, escrita, emoção, consciência. Contudo, tendemos a não o exercitar, acomodando-o a tarefas rotineiras e pouco estimulantes.
Preocupada com a saúde do cérebro dos portugueses, a psicóloga Sandra de Carvalho Martins, deu aos escaparates o livro “Um cérebro à prova de cansaço” (edição Planeta). Cansaço que é efeito colateral, entre outros, do modo de vida moderno, do stresse, de pouco tempo para o lazer e de maus hábitos de sono. Uma má “dieta” para o cérebro que, não raro, traz falhas de memória, dificuldade na concentração ou na habilidade para fazer um raciocínio simples.
Sandra de Carvalho Martins propõe na sua obra mais de 200 exercícios divertidos e práticos, para o treino das capacidades mentais, quatro para cada dia, ao longo de sete semanas.
Com a psicóloga fazemos uma viagem ao mundo do nosso cérebro, abordando questões como a melhor “dieta” para este órgão com 1,5 kg: “uma boa escolaridade (tanto quanto nos for possível), um estilo de vida intelectualmente estimulante, uma alimentação equilibrada, a prática de exercício físico de forma regular, bons hábitos de sono, o envolvimento social, a meditação, a posse de um bom autoconceito e de uma boa autoestima”, resume Sandra Martins.
Conversa que não esquece as redes sociais e o muito tempo que lhes dedicamos. Moderação é, aqui, palavra de ordem, até porque estamos a subtrair tempo a outras atividades que muito mais bem-estar nos poderiam proporcionar, e muito mais contribuiriam para a saúde do nosso cérebro.
Tendo o seu livro como objeto o cérebro quer, em jeito de anfitriã, apresentar-nos este órgão que tão bem define a nossa humanidade?
O cérebro humano é o responsável por todas as funções relacionadas com o pensamento, intuição, imaginação, ação, escrita, emoção, consciência, entre tantos outros. É também ao cérebro que cabe a regulação de uma série de funções vitais como a respiração, os batimentos cardíacos, o controlo da temperatura, o sono, a fome ou a sede. Este é o principal órgão do sistema nervoso, pesa cerca de 1,5 kg e dispõe de células especializadas, os neurónios. Cada um dos 86 mil milhões de neurónios pode estabelecer até dez mil conexões sinápticas.
Quando surge uma nova sensação ou informação, esta desencadeia no cérebro um fluxo de atividade através de uma rede de neurónios. Os neurónios que são ativados juntos reforçam as suas ligações. Posteriormente, quando a mesma sensação surgir, os neurónios serão capazes de uma reação mais rápida, seguindo o mesmo padrão. Neste caso, o “caminho” estará cada vez mais visível e fácil de utilizar. Pelo contrário, no caso da sensação não se repetir, as ligações enfraquecem-se porque os “caminhos” não voltaram a ser percorridos. Tendo por base estas informações, o cérebro reorganiza-se sistematicamente, reforçando sinapses quando ocorreu a repetição de uma ação ou sensação, produzindo novas sinapses ou eliminando aquelas que já não têm utilidade. O cérebro é um órgão dotado de plasticidade, logo flexível e dinâmico e a forma como o usamos determina aquilo que ele é.
Diz-nos o adágio: “burro velho não aprende línguas”. No que toca à plasticidade do cérebro humano, podemos levar o provérbio à letra?
Não podemos nem devemos levar o provérbio à letra. Hoje sabemos que o cérebro está em constante mudança, não estando a sua capacidade de aprender e de mudar limitada à infância ou à adolescência como se acreditou durante séculos. Mesmo nos cérebros de pessoas idosas podem crescer novos neurónios, nova vasculatura e estabelecerem-se novas conexões sinápticas. Desta forma, as evidências científicas apontam que, muito embora o envelhecimento acarrete restrições progressivamente mais severas relativamente ao nível máximo de desempenho cognitivo, este ainda pode ser melhorado em pessoas muito idosas, pois ainda existe plasticidade cerebral suficiente.
Assim, temos de abandonar a ideia de que só aprendem bem os jovens. Todas as idades são boas para começar novas aprendizagens, ativar diferentes áreas do nosso cérebro e potenciar novas sinapses.
Hoje sabemos que o cérebro está em constante mudança, não estando a sua capacidade de aprender e de mudar limitada à infância ou à adolescência como se acreditou durante séculos.
Ainda no campo dos lugares-comuns, não raro ouvimos ou lemos que apenas usamos 10% da capacidade do nosso cérebro. Estamos perante um mito ou há evidências de que assim seja?
Estamos perante um mito. Usamos todo o nosso cérebro, e até mesmo enquanto dormimos, todo este surpreendente órgão está ativo. Esta atividade é essencial pois é o cérebro que controla atividades como a respiração, a atividade cardíaca e a memória.
Não há estudos que determinem a percentagem do cérebro que usamos, mas sabe-se que até quando executamos o mais pequeno gesto estamos a usar muito mais do que 10% do nosso cérebro.
O cérebro tende a ser preguiçoso, a acomodar-se às tarefas rotineiras que lhe “damos” no dia a dia ou, pelo contrário, é ávido de novas experiências, embora lhe recusemos as mesmas?
As tarefas rotineiras que damos ao nosso cérebro acabam por ser automatismos que não exercitam a cognição. Acresce que todos gostamos de sentirmo-nos eficazes nas tarefas que executamos. Daí que, muitas das vezes, optamos por mantermo-nos na zona de conforto daquilo que sabemos que somos hábeis a resolver, e evitamos a realização de novas tarefas. Desta forma também não nos confrontamos com possíveis dificuldades, e protegemos a nossa autoestima. Nesta escolha entre mantermo-nos na nossa zona de conforto ou gostarmos de novas experiências, a nossa personalidade assume um papel preponderante. Com efeito, há pessoas que gostam mais de experimentar novos desafios e que, por terem uma autoestima mais elevada, acreditam que não é a sua resposta a um novo desafio que dita ou não o seu sucesso. Outras pessoas têm mais receio de enfrentar aquilo que é novo, receio de exporem algum tipo de dificuldade, de não serem capazes e do desconforto que isso pode representar para elas próprias. Em suma, o cérebro é confrontado com os desafios que optamos, ou não, por lhe apresentar, e nesta seleção a nossa personalidade desempenha um aspeto fundamental.
O cérebro é confrontado com os desafios que optamos, ou não, por lhe apresentar, e nesta seleção a nossa personalidade desempenha um aspeto fundamental.
A sociedade, tal como a vivemos atualmente, é uma “boa conselheira” do nosso cérebro?
A sociedade oferece um conjunto de possibilidades muito vasto ao nosso cérebro. Nós é que temos de ser os nossos bons conselheiros, neste caso, selecionando o que é benéfico e útil ao nosso cérebro e ao nosso bem-estar psicológico. Naturalmente que se não soubermos fazer uma boa seleção, escolhendo criteriosamente aquilo a que queremos prestar a nossa atenção e a forma como desejamos passar os nossos tempos livres, corremos o risco de consumir demasiada informação geradora de ansiedade ou stress, como o são as informações massivas dadas a respeito da pandemia. É desejável que nos mantenhamos informados, mas devemos selecionar e delimitar muito bem o período que concedemos a esta atualização. Também as redes sociais devem ser usadas com moderação. Demasiado tempo nas redes sociais e a ver televisão é tempo que retiramos a outras atividades que muito mais bem-estar nos poderiam proporcionar, e muito mais contribuiriam para a saúde do nosso cérebro.
Qual a melhor “dieta” que podemos fornecer ao nosso cérebro?
A melhor “dieta” para o nosso cérebro é aquela que reúne uma boa escolaridade (tanto quanto nos for possível), um estilo de vida intelectualmente estimulante, uma alimentação equilibrada, a prática de exercício físico de forma regular, bons hábitos de sono, o envolvimento social, a meditação, a posse de um bom autoconceito e de uma boa autoestima.
O exercício físico, os bons hábitos de sono e uma alimentação equilibrada são, desde logo, três pilares essenciais de um cérebro saudável. As células cerebrais consomem oxigénio e glicose como combustível, sendo que quanto mais exigente a tarefa que se desempenha, mais combustível será necessário. Desta forma, é crucial ter uma quantidade apropriada de oxigénio e glicose no cérebro para que ele funcione da melhor forma possível.
De enorme relevância é também a manutenção de um estilo de vida mentalmente ativo, pautado por novas e diferentes aprendizagens e desafios, capazes tanto de desencadear novas ligações neuronais como de reforçar as existentes. Efetivamente, a investigação sugere que quanto mais ativarmos o nosso cérebro ao longo da vida, mais ágeis mentalmente permaneceremos, e menor será o risco de comprometimento cognitivo em idade avançada.
As atividades sociais têm também um efeito bastante positivo no funcionamento da cognição e são um fator de prevenção contra a deterioração cognitiva.
Ter um bom autoconceito e autoestima, assim como a prática da meditação, são também estratégias que muito contribuem para a saúde do nosso cérebro.
O exercício físico, os bons hábitos de sono e uma alimentação equilibrada são, desde logo, três pilares essenciais de um cérebro saudável.
O que se entende por cognição e reserva cognitiva? É esta última o trunfo que o nosso cérebro guarda?
A cognição é a nossa capacidade de pensar que nos leva à compreensão da nossa realidade interior e exterior. Neste conceito englobam-se domínios como: a linguagem, a memória, a perceção, a atenção, os juízos de valor, o raciocínio, as funções executivas, a resolução de problemas, o reconhecimento e as emoções.
Já a reserva cognitiva refere-se à capacidade do nosso cérebro lidar com os efeitos de processos neurodegenerativos e varia segundo o grau de estimulação mental que se teve ao longo de uma vida.
Um estilo de vida saudável e estimulante, funções profissionais e atividades de lazer complexas e o gosto pela aprendizagem ao longo da vida são os ingredientes fundamentais para se dispor de uma boa reserva cognitiva. Uma boa reserva cognitiva equivale a um menor risco de vir a desenvolver demência.
Podemos assim considerar a reserva cognitiva como o último trunfo que o nosso cérebro guarda. Com efeito, é a reserva cognitiva que dita a capacidade de o cérebro encontrar caminhos alternativos para solucionar um desafio quando o caminho principal, por qualquer motivo, deixa de ser capaz de fazer a ligação necessária. Podemos fazer uma analogia com um jogo de futebol, em que ao longo de um jogo os jogadores titulares vão conseguindo jogar, mas quando um deles se lesiona ou já não está capaz de desempenhar bem a sua tarefa, é substituído por um jogador suplente (proporcionado pela reserva), mantendo a equipa (cérebro) com capacidade de continuar a jogar. Se não tivermos jogadores suplentes, o jogo (vida), torna-se mais difícil.
Em sentido contrário, quais as maiores ameaças ao funcionamento do nosso cérebro?
As ameaças são os maus hábitos alimentares, o sedentarismo, a ausência de hábitos de leitura, a fraca adesão a atividades mentalmente estimulantes, a recusa de novas aprendizagens, a solidão e a vivência continuada de ansiedade e de stress.
A COVID-19 com o confinamento e isolamento social a que ficámos sujeitos é um contexto propicio ao cansaço do cérebro?
Durante toda a vida vamos passando por situações que de forma mais ou menos intensa promovem o cansaço do cérebro, mas situações como a desta pandemia, com grande duração de confinamentos, com os limites às atividades que se podem realizar, com o isolamento social especialmente dos infoexcluídos e com todo o negativismo associado às notícias que diariamente nos chegam, potenciam esse cansaço, pois o cérebro deixa de receber tantos estímulos e desafios como receberia numa situação de normalidade. Além do mais, a vivência de sentimentos de ansiedade e de stress levam a este cansaço do cérebro, que perde a capacidade de se concentrar e acusa mais facilmente dificuldades de memória, pois está focado no motivo da sua tensão.
Diz-nos no seu livro que o “cérebro aprende melhor quando está convencido de que consegue aprender”. Como se dá este convencimento?
Se eu acreditar que o meu cérebro é capaz de aprender, esta minha crença irá contribuir para a sua concretização. Isto acontece porque quando desenvolvemos este tipo de prognósticos, acreditamos tanto neles que nos comportamos como tal de facto estivesse a ocorrer – o que se designa, em psicologia, de profecia autorrealizável.
Assente na crença de que consegue aprender, devemos avançar sem receio rumo a novas aprendizagens e desafios. Todos certamente já ouvimos (ou dissemos) expressões como “eu não consigo fazer isso” ou “isso não é para a minha idade”, e tal só demonstra um certo medo de errar, o medo de não conseguir. Mas se nunca tentarmos aprender a resolver um problema, nunca o resolveremos. As crianças aprendem muito facilmente os primeiros desafios da vida pois são muito curiosas, veem os adultos ou outras crianças e querem aprender a fazer as mesmas coisas, estão recetivas, estão convencidas de que se os outros conseguem, também elas conseguirão. À medida que vão superando os desafios, convencem-se que conseguem aprender outros, e isso facilita o seu desenvolvimento. Os adultos devem ter uma postura semelhante, devem procurar desafiar-se, tentar resolver novos problemas, pois quando o conseguirem solucionar vão sentir-se bem com eles mesmos e, consequentemente, convencer-se que conseguem aprender porque “afinal até nem era assim tão difícil”.
Se eu acreditar que o meu cérebro é capaz de aprender, esta minha crença irá contribuir para a sua concretização.
O seu livro aponta-nos um programa de sete semanas. Porquê este período?
Considerei que seria um período suficientemente longo para que o leitor pudesse experimentar uma grande variedade de exercícios e com isto conseguir perceber em que domínios da cognição se sente mais ou menos à vontade, ter a oportunidade de treinar estas diferentes capacidades e otimizar o seu funcionamento cognitivo. No fim do livro, apercebendo-se que, por exemplo, tem mais dificuldades na área do raciocínio numérico, poderá procurar material com desafios matemáticos para se continuar a exercitar. Se tiver problemas na área de linguagem, poderá apostar na leitura de romances ou de notícias pois tal irá potenciar esse domínio da cognição.
Também o período de sete semanas serve para habituar os cérebros cansados a gostarem de se estimular e encontrarem satisfação em atividades intelectualmente desafiantes.
Quer, sumariamente, apresentar-nos o seu plano e os exercícios que lhe estão subjacentes?
O plano de sete semanas que proponho treina diferentes domínios da cognição: o raciocínio lógico, o raciocínio numérico, a linguagem, a atenção e concentração, a memória, a criatividade e as capacidades visiospaciais. Diariamente proponho a execução de quatro ou cinco exercícios, que podem demorar dez ou 30 minutos, tudo depende da destreza do leitor na sua resolução. No final das sete semanas, encontra os desafios finais que só um cérebro bem treinado tem a agilidade suficiente para conseguir resolver.
Os objetivos que se esperam alcançar com o cumprimento deste plano são vários: conhecer melhor a sua performance nos diferentes domínios da cognição; conservar e potenciar o seu funcionamento intelectual global; possibilitar uma maior confiança nas suas capacidades cognitivas e uma maior predisposição para se envolver em atividades intelectualmente estimulantes.
Todos certamente já ouvimos (ou dissemos) expressões como ‘eu não consigo fazer isso’ ou ‘isso não é para a minha idade’, e tal só demonstra um certo medo de errar, o medo de não conseguir.
Para além dos exercícios que apresenta na obra que lançou, podemos “ginasticar” o nosso cérebro nas experiências rotineiras do dia a dia. Pode dar-nos alguns exemplos?
O raciocínio numérico pode ser exercitado, por exemplo, quando vamos comprar algo, seja tentando calcular o preço final de um produto que está com um determinado desconto ou calcular o preço unitário, por quilograma ou litro por exemplo, de um produto que não tem essa informação, procurando fazer uma compra economicamente racional. A criatividade muitas vezes pode ser exercitada em conjunto com crianças, numa viagem ou em casa, tentando inventar uma canção para elas, com melodia conhecida ou outra totalmente nova, mesmo que no final não fique algo “perfeito”. A memória pode ser treinada revendo, por exemplo, os nossos almoços dos últimos cinco dias. Já a linguagem é uma área que podemos treinar através da leitura de livros, e se possível com o resumo dos mesmos. A capacidade visiospacial é passível de ser exercitada quando ao entrarmos numa casa de dois andares ou até num prédio, pela primeira vez, tentarmos visualizar a divisão que se encontra imediatamente acima ou abaixo de uma outra. O raciocínio lógico devemos estimular no nosso dia a dia procurando retirar conclusões racionais das informações que analisamos.
Outras formas de “ginasticar” o nosso cérebro no nosso dia a dia: percorrer um caminho diferente do seu trabalho para casa, lavar os dentes com a mão não dominante, realizar alguma tarefa de olhos fechados (como tomar banho ou vestirmo-nos). Tudo que tire o nosso cérebro da sua zona de conforto permite ginasticá-lo, algo que também é conhecido como neuróbica.