Antigo Presidente da República viu partir dois primeiros-ministros e tomou a iniciativa de fazer sair outro, dissolvendo a Assembleia da República. Mas o também ex-presidente da Câmara de Lisboa destacou-se pelas muitas causas a que se dedicou até ao final da vida.
O coração foi sempre um problema para Jorge Sampaio. Enquanto outros homens públicos fazem carreira pela cabeça e o cálculo, ele nunca nunca foi capaz de resistir ao predomínio das emoções e dos afetos que a racionalidade da sua esmerada educação anglo-saxónica não conseguia a maior parte das vezes suster. Tudo se agravou, no entanto, quando em 1996, poucos dias depois da sua eleição para o primeiro dos dois mandatos presidenciais, lhe foi diagnosticado um aneurisma. Teve de ser operado de imediato, “de coração aberto”, dando origem a uma situação original na vida política portuguesa: a substituição no cargo pelo presidente da Assembleia da República, a segunda figura institucional do Estado (Almeida Santos, já falecido). Foi o primeiro susto, de que recuperou num ápice, mas já houve outros. Em 1999 voltou à sala de operações. Em 2017 fê-lo por duas vezes, uma das quais devida a problemas acrescidos de mobilidade.
Jorge Fernando Branco de Sampaio (Lisboa, 18 de setembro de 1939) foi presidente da República durante dois mandatos, entre 1996 e 2006; secretário-geral do PS (88/92); e presidente da Câmara de Lisboa (90/95). Após a passagem pelo Palácio de Belém, dedicou-se a missões mais globais. Em 2006, foi nomeado pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, o primeiro ‘enviado especial’ na Luta contra a Tuberculose; e entre 2007 e 2013 foi alto representante da ONU para a Aliança das Civilizações. Agora dirigia a Plataforma Global para os Estudantes Sírios, fundada por si em 2013 com o objetivo de contribuir para dar resposta à emergência académica que o conflito na Síria criara, deixando milhares de jovens para trás sem acesso à educação.
Cimeira, dissolução e Timor-Leste marcantes em Belém
Os mandatos presidenciais de Jorge Sampaio ficaram marcados por vários acontecimentos importantes, como a demissão de António Guterres de primeiro-ministro, em dezembro de 2001. No mais importante de todos eles, a ida de Durão Barroso para presidente da Comissão Europeia, redefiniu os limites da função presidencial. Deu posse a um primeiro-ministro, Santana Lopes, a quem pessoalmente não reconhecia competência e no qual não tinha confiança para dirigir Portugal, ‘apenas’ porque tinha o entendimento de que em legislativas se vota em muito mais do que num chefe de governo – e a maioria, do PSD com o CDS, se mantinha firme no Parlamento atrás do candidato nomeado por Barroso; mas também não teve hesitação em demitir Santana Lopes, apenas cinco meses depois, e convocar eleições legislativas antecipadas, quando entendeu que as sucessivas disfunções governativas, pontuadas por vários casos polémicos, estavam a conduzir ao descrédito do Estado. Arriscou o veredicto popular. Ainda hoje se especula sobre o que teria feito Sampaio se o eleitorado tivesse respaldado a maioria de direita deitada pela borda fora e não, como viria a suceder, mudado o perfil partidário do Parlamento dando, nesse ano de 2005, a vitória, com maioria absoluta, a José Sócrates [que tinha ascendido a líder do PS porque Ferro Rodrigues, agastado com a decisão de Sampaio de dar posse a Santana Lopes, se demitira de secretário-geral].
O momento mais feliz dos dois mandatos de Jorge Sampaio, e ele nunca o escondeu, foi aquele em que viu surgir em Timor Leste um país independente. Fora uma luta diplomática muito intensa, na qual um Portugal pequeno, carregado de complexos com origem no acelerado processo de descolonização, se opusera na cena internacional a uma potência regional com a força da Indonésia. No reverso da medalha, o momento mais triste foi quando não conseguiu opor os seus argumentos aos do ambicioso primeiro-ministro Durão Barroso, que talvez já embalado com as suas ambições europeias, levou Portugal a ser anfitrião da cimeira das Lajes (16 de março de 2003) entre George W. Bush e Tony Blair, com José Maria Aznar de premeio, que determinou a intervenção militar no Iraque com o argumento que viria a desfazer-se no futuro, a de que haveria na posse de Saddam Hussein “armas de destruição massiva”. Não havia. E Sampaio, defensor de uma decisão multilateral no âmbito das Nações Unidas, nunca esqueceu esse triste episódio de que Durão Barroso se haveria de penitenciar anos mais tarde.
Coligação histórica em Lisboa
Além dos cargos públicos, a vida de Jorge Sampaio, dois casamentos, dois filhos (Vera e André), foi sempre recheada de ideais e lutas. Estudante revolucionário nos anos 60 do século passado, combatente do regime do Estado Novo, fundador de movimentos e partidos (MES e Intervenção Socialista) só aderiu ao PS em 1978, quando já tinha sido candidato (oposicionista) a deputado para a antiga Assembleia Nacional, secretário de Estado no IV Governo Provisório depois do 25 de Abril e já era um advogado de créditos firmados. Rapidamente entrou no Parlamento, onde se manteve até 1991, e aí chegou a líder parlamentar socialista.
Se a carreira política de Jorge Sampaio tem como ponto mais alto a Presidência da República, a luta política teve o auge na Câmara Municipal de Lisboa. Aí liderou, em 1989, uma coligação histórica de esquerda com o PCP que permitiu derrotar o candidato da direita, então Marcelo Rebelo de Sousa: 49,17% contra 42,18% dos votos. O sucesso da coligação continuou nas eleições seguintes, que integraram a UDP e o PSR (dois dos partidos-base do atual Bloco de Esquerda), permitindo a reeleição de Sampaio, com 56,66% dos votos. Foi neste caldo que o agora primeiro-ministro António Costa, na altura pupilo político e estagiário do escritório de advocacia de Sampaio, formou as suas convicções ideológicas.
Interventivo até ao final da vida
No início da sua vida, Jorge Sampaio teve uma infância privilegiada, vivida, em consequência da carreira do pai, médico, entre Estados Unidos e Inglaterra. Estudou música e licenciou-se em direito. Tinha uma visão do mundo que o diferenciava. Poucos dias antes de ser internado de emergência, e depois de ser evacuado de helicóptero do Algarve, onde passava férias, publicara no jornal “Público” um artigo onde fazia um apelo a todos os parceiros da sua Plataforma Global, às entidades oficiais, às instituições do ensino superior, centros de estudos e investigação, bem como empresas, fundações, outras organizações e particulares, para que colaborassem mais, disponibilizassem apoios, oportunidades académicas e profissionais, estágios e vagas para jovens afegãos.
Até ao fim, Jorge Sampaio, que deixa publicadas as suas intervenções políticas e recebeu diversas condecorações, nacionais e estrangeiras, nunca deixou de lutar por um mundo melhor.